top of page

  A Desfolhada.

As desfolhadas são uma antiga tradição a perder-se gradualmente tal como tantas outras, fruto das investidas do progresso que trouxe consigo a necessidade de executar a mesma tarefa de forma mais rápida e com menos trabalho. Como em tudo a modernização também traz consequências. O divertimento, a confraternização e a entreajuda também perdem vida.

 

Noutros tempos, altura em que o controlo sobre as moças era muito rigoroso por parte das mulheres mais velhas, na altura em que não se namorava mas sim “conversava”, eram extremamente raros os momentos em que um casal podia estar a sós um com o outro. Então, todos os momentos que permitissem um pouco mais de aproximação ou uma troca de olhares que passasse despercebido aos outros era como uma lufada de ar fresco para aqueles que “conversavam” ou queriam “conversar”. Esses momentos eram as fainas agrícolas em que a participação se estendia a outras pessoas e não exclusivamente aos elementos da família, como por exemplo a desfolhada.

 

Antecipadamente e em data marcada, nos finais de Setembro, eram convidados para ajudar, os familiares diretos e indiretos, amigos, vizinhos e outras pessoas na certeza de que quem convidava, iria depois executar o mesmo trabalho “de troco”.

 

Aparentemente parece um trabalho leve, mas afinal apresenta-se como um trabalho bastante arduo especialmente para as mãos. Previamente, com alguns dias de antecedência escanou-se o milhão, trabalho que consiste em cortar a parte superior da planta a partir da espiga e que se chama bandeira ou cana, retirando também todas as folhas que a planta tem. Depois de juntar uma certa quantidade de bandeiras e folhas, mais ou menos o equivalente àquilo que a mão consegue segurar, as primeiras folhas das bandeiras são enroladas em volta de todo o material apanhado dando um nó. Está feito o "fachuco" que é depois pendurado na metade do milhão que ainda fica enterrada com a espiga. O fachuco vai completar a secagem assim pendurado e servir mais tarde de alimento para os animais ruminantes. Em Constantim é habitual em vez de milho chamar-se milhão, tanto à planta como ao grão.

 

 

Figura 257 – Aspeto do milho depois de retirados os fachucos.

Até ao dia anterior são retirados e guardados todos os “fachucos” e no dia da desfolhada, à hora marcada, todos se juntam no terreno onde será feita a desfolhada que tanto pode ser à sombra de uma árvore como no meio do próprio terreno onde o milhão foi semeado.

 

Todos escolhem um lugar onde sentar e entretanto já os homens iniciaram a recolha das espigas. À medida que os cestos de vime se vão enchendo, vão sendo despejados no centro da roda que se formou e a desfolhada inicia consistindo basicamente em separar a espiga de milho do folhato, o grupo de "folhas" que envolve a espiga.

 

O monte de espigas cresce continuamente até não haver mais espigas para colher e então todos se juntam definitivamente em volta. Enquanto a desfolhada decorria cantava-se em coro, contavam-se histórias, contavam-se anedotas e entre aqueles que “conversavam” ou pretendiam “conversar” trocavam-se olhares comprometidos enquanto todos riam em torno das espigas desfolhadas e por desfolhar.

Os mais jovens apressavam-se a escolher as espigas que pela sua cor mais probabilidades tinham de conter um milho rei, que era uma espiga composta por grãos vermelhos.

 

 

Figura 258 – Aspeto de uma desfolhada.

 

 

Aquele que encontrasse uma espiga de milho rei levantava-se e gritava: -“Milho rei”. Então tinha direito a beijar todas as pessoas do sexo oposto que compunham a roda. Era uma das raras oportunidades que os casais de namorados tinham para trocar um beijo embora apressado.

 

Muitas vezes as desfolhadas eram acompanhadas de concertinas ou gaitas de beiços outras vezes havia como que um bailarico no final da safra a acompanhar a merenda que consistia de varios produtos, desde enchidos ou bacalhau normalmente frito, a refeições cozinhadas e onde não podia como é obvio faltar o vinho da terra.

 

Quadras como as que se seguem, bailavam nos lábios dos participantes com uma alegria tal, que até as espigas nos cestos de vime se quedavam a ouvi-las.

 

 

Milho branco, milho louro,

Que tem esta desfolhada,

O milho é um tesouro,

Da terra que é bem fadada.

 

 

Rapazes e raparigas,

Cantai bem estas canções,

Ao desfolhar as espigas,

Cautela com os corações.

 

 

Figura 259 – Uma espiga de milho rei entre outras espigas.

 

As tarefas terminavam depois de todas as espigas serem ensacadas em sacos de serapilheira para no dia seguinte, se o dia estivesse no fim, seguirem para a eira para completar a secagem caso contrário nesse mesmo dia as espigas ainda ficavam a secar ou ficavam já na eira protegidas apenas da humidade da noite.

 

As espigas podiam também ser armazenadas sem serem malhadas completando a secagem com os ventos do Outono sendo para isso depositadas em “canastros” ou espigueiros que pela sua construção, permitia que as espigas estivessem permanentemente ventiladas.

 

Figura 260 – Estender o milhão na eira.

 

 

Figura 261 – Canastros em Constantim, dois em ruinas e um restaurado.

 

A malhada seria o culminar de todo este trabalho que começou na preparação do terreno seguida pela sementeira com os grãos humedecidos que os fará germinar mais depressa. Depois ultrapassou sachas, mondas e arraladelas e agradeceu regas crescendo saudável. Crescendo sem doenças garante desde logo a próxima sementeira.

 

Antoine Lavoisier, químico francês terá dito que “Na natureza nada se perde e nada se cria, tudo se transforma”.

 

Em Constantim, embora não o tivessem dito, já o sabiam desde sempre e como tal, tudo se reutilizava. Os fachucos compostos por canas e folhas para o gado, os folhatos para encher colchões e fazer bonecas, as barbas para fazer chá e simular os cabelos das bonecas, os casulos para a lareira e as “pochas” para encher almofadas.  Até os “canocos” que ficavam na terra para serem posteriormente enterrados ou queimados fornecendo nutrientes à terra, serviam de brinquedo. Escolhendo os mais resistentes e não totalmente secos, dobrava-se uma ponta entre dois nós e era ver as crianças a empurrá-los pelo chão decorados a gosto.

 

A chegada da tecnologia moderna que permite a execução do mesmo trabalho com um mínimo de esforço humano e num período de tempo largamente inferior, além de acabar com a tradicional desfolhada, inviabiliza também tudo isto.

 

As modinhas e histórias que alegramente pairavam no ar, saídas de gargantas afinadas e desafinadas, deram lugar ao trabalhar ensurdecedor das máquinas que se acentua á medida que as espigas de milho atravessam as suas entranhas, deixando as vozes de inebriar o ar enchendo-o de som e alegria.

-

.

 

.

bottom of page