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  Matança do Porco

O porco, alheio ao que irá acontecer nos próximos minutos, dá voltas na “loja” à espera da comida que há já dois dias não cai no “gamelo”.

 

Na rua, um banco comprido de madeira onde será consumada a matança, está colocado e devidamente “calçado” para receber o porco.

 

Na cozinha, alguidares de alumínio ou plástico, estão já preparados com vinho e alho para receber o sangue derramado pelo desventurado animal enquanto na rua em cima de um pano repousam já as facas de gume cego, que serão utilizadas mais adiante. Ao lado das facas ou na borda da rua algumas pedras ásperas de granito aguardam também o momento da sua utilização.

 

Os carrascos, entre dois dedos de conversa e histórias de matanças passadas, aguardam em volta do banco a chegada do matador, que por volta da hora marcada, aparece com o seu conjunto de facas bem afiadas.

 

Umas palavras de ânimo e afinação de estratégias e deitam-se mãos à obra. Já na “loja”, com o matador a comandar a incursão, duas pessoas seguram as orelhas do porco que de imediato começa a grunhir.

 

É o momento para o matador lhe meter a corda no maxilar inferior, como forma de o manter alinhado, puxando o porco enquanto os outros empurram em conjunto na direção do local do sacrifício.

 

Muitos grunhidos de desespero depois, o porco encontra-se lado a lado com o banco e trocam-se posições para tombar o animal para cima do altar do sacrifício, o que às vezes só acontece após várias tentativas.

 

 

Figura 243 – Levando o porco para o banco.

Finalmente deitado no banco, o matador enrola a restante corda em torno do focinho para evitar mordeduras fatais e enquanto uma outra pessoa lhe segura as patas traseiras, mantendo-as afastadas uma da outra e esticadas para trás, outros seguram as patas dianteiras, cruzando-as para evitar as explosões de força do animal, que se se libertar pode causar sérios danos. Uma outra pessoa segura o rabo do porco, de forma a equilibrar o suíno no banco, que com as contorções, tende a estatelar-se no chão.

 

Com rápidos movimentos, o algoz rapa os pelos do lado inferior do pescoço no lugar onde vai desferir a facada fatal e após uma fração de segundo em que aguarda que a mulher da casa se posicione com o alguidar para receber o sangue, crava a comprida faca de dois gumes em direção ao peito do animal que em total aflição, solta dolorosos e desesperados grunhidos, enquanto fluxos de sangue quente jorram para dentro do alguidar em sintonia com os espasmos respiratórios do pobre bicho.

 

 

Figura 244 – Momento em que o porco é morto.

Sucessivas vezes, a faca entra e sai da ferida, cortando a aorta do animal para que a maior quantidade de sangue possível possa sair, permitindo assim uma melhor conservação das carnes. Quando as forças do sacrificado animal começam a faltar, uma última investida da faca no seu interior corta a traqueia e após intermináveis minutos envolto em roncos agonizantes, acaba por sucumbir asfixiado, tombando finalmente … morto.

 

No entanto, para a dona da casa, é normalmente um momento de grande tristeza, pois no fundo, é um animal a quem ao longo de quase um ano, todos os dias alimentou e acarinhou, ao ponto de lhe ganhar amizade e que agora desaparece.

 

Os feixes ou molhos de palha, (em Constantim são “fachas”), estão já preparados e “à mão de semear”, que é como quem diz “ao alcance da mão”. O matador pega num punhado de palha e ateia-lhe fogo. Quando a chama atinge uma determinada intensidade chegou a hora de começar a “chamuscar” o porco. O matador bate com a palha em chamas no corpo inerte do porco, a um ritmo mais ou menos certo de forma a evitar que a chama se apague, queimando-lhe o pelo e fazendo empolar a epiderme. As facas de gume cego entram então em ação e começam a raspar a pele empolada pelo calor e os restos de pelo queimado. Depois de um lado estar completo vira-se o porco e procede-se de igual forma. Para retirar as unhas, sujeitam-se estas a uma exposição ao calor mais prolongada, até que, com uma torcedela, elas saltam do lugar.

 

Como brincadeira, depois de arrefecerem, punham-se as unhas no nariz dos mais novos.

 

Depois de chamuscado de ambos os lados, uma nova etapa se segue, a de lavar a carcaça inerte e sem vida.

 

Antigamente com um recipiente qualquer e agora habitualmente com uma mangueira, o matador derrama água sobre a pele queimada do porco enquanto os outros vão esfregando com as pedras ásperas de granito até a pele ficar branquinha.

 

Lavado o primeiro lado, eis que chega o sarrabulho fumegante, acabadinho de tirar da panela. O sarrabulho é o sangue do porco, misturado com vinho e alho, temperado com sal e cozido em água de onde sai em pedaços castanhos e que se assemelham a esponjas disformes.

 

 

Figura 245 – Chamuscar o porco.

 

 

Depois de comido o sarrabulho, acompanhado com uns copos de vinho da casa, há que recomeçar o trabalho. Volta-se o porco e lava-se o outro lado.

 

Durante a lavagem, o matador torce um pouco de palha aproximadamente com o diâmetro do ânus do porco e limpa o intestino introduzindo a palha e retirando as fezes que nos esgares da morte se aproximaram da saída. Em Constantim diz-se que se está a tirar a “assadura do banco”.

 

Figura 246 – Uma pausa para comer o sarrabulho.

Depois da parte final do intestino ser limpa, é cortada a carne que circunda o ânus e apertado com um cordel para que nada saia e suje as carnes. Finalmente, a última tarefa com o porco ainda na rua, é fazer um corte na parte posterior das patas traseiras deixando expostos os tendões. Como esses tendões têm resistência suficiente para aguentar o peso da carcaça do animal, introduz-se em ambas as patas, entre os tendões e os ossos, um objeto curvo em madeira resistente que dá pelo nome de “chambaril”.

 

 

Figura 247 – O chambaril que mantém o porco na vertical.

 

Figura 248 – O porco durante a lavagem e já com o chambaril colocado.

O “chambaril”, ao mesmo tempo que mantém o porco aberto quando estiver pendurado, suporta-o na posição vertical, de cabeça para baixo, fazendo escoar restos de sangue do corpo do animal.

 

Com o trabalho de exterior completo, só falta levar o porco para o lugar onde ficará pendurado por dois a três dias, para que, com o frio do Inverno, as carnes fiquem bem secas, permitindo uma melhor conservação. Habitualmente fica pendurado numa dependência do rés-do-chão da casa. Para o transporte do porco, os intervenientes na matança pegam no banco de ambos os lados e transportam-no para o local onde ficará pendurado. Depois de posicionado por baixo de uma trave, o porco é içado ficando suspenso pelas patas traseiras. Como nesta posição a pele se encontra bem esticada, é novamente barbeado retirando o pelo possível.

 

Chegada a hora de abrir o porco, é feito um corte a todo o comprimento do porco, desde o corte em volta do ânus até à facada na garganta. Um cesto de vime ou um balde grande está já preparado para receber os intestinos e as vísceras deixando o porco completamente vazio no seu interior.

 

Com uma vara afiada em ambas as pontas afastam-se os lados da barriga, mantendo a carne mais esticada. A vara vai também servir de apoio aos untos que ali ficarão a secar.

 

O trabalho da matança do porco só estará completo com a “desmancha”, que é o esquartejamento da carcaça de acordo com os hábitos da região seguida da salga das peças que se conservarão em sal, bem como os outros tipos de aproveitamento das carnes para fins específicos. Os untos são colocados a ferver para se fazer o “pingo”, mais conhecido como banha de porco e que serve para utilizar em vez de azeite ou óleo. As raspas de carne ensanguentada marinadas em vinho e alho, juntamente com pão cortado em pequenos pedaços, vão dar origem às chouriças, conhecidas no mercado como mouras. Das patas traseiras serão feitos os presuntos e das dianteiras as pás. Dos lombos fazem-se salpicões e de outras partes, com mistura de carne gorda e magra, fazem-se as linguiças, o correspondente ao chouriço nos mercados atuais. Para os enchidos, (salpicões, chouriças e linguiças), são utilizados os intestinos do porco que haviam sido previamente lavados.

 

O ditado popular diz que, “Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”, por isso, em Constantim tudo se faz de acordo com o que se aprendeu ao longo de anos e anos de transmissão destes conhecimentos. Como não poderia deixar de ser, o progresso trouxe outras formas de fazer este trabalho e principalmente no chamuscar do porco, há já muitas pessoas que utilizam um maçarico a gás, mas é notória a diferença de sabor na carne queimada com a palha, relativamente à carne onde se utilizou o maçarico que não tem tão bom sabor.

 

Durante algum tempo, até 31 de Dezembro de 2013 a matança do porco foi proibida por lei, no entanto, pelo Despacho nº 14535-A/2013 de 11 Novembro de 2013 que entrou em vigor em 01 Janeiro de 2014, a matança do porco volta a ser autorizada fora dos estabelecimentos aprovados para esse fim.

 

O ponto 2 desse Despacho menciona que “É autorizada a matança para autoconsumo de bovinos, ovinos e caprinos com idade inferior a 12 meses, de suínos, aves de capoeira e coelhos domésticos, desde que as carnes obtidas se destinem exclusivamente ao consumo doméstico do respetivo produtor, bem como do seu agregado familiar, e sejam respeitadas as seguintes condições (...).” As condições impostas, podem ser consultadas no Despacho.

 

Atualmente pensa-se sobretudo que é uma tradição cruel, mesmo sabendo que quando se alimenta o porco durante quase um ano é já com essa finalidade, o mesmo sucedendo com coelhos, galinhas e outros animais de cativeiro. No entanto é esta a ordem natural das coisas e todos dependem uns dos outros na marcha pela sobrevivência. A própria natureza, na sua perfeita ordem das coisas consegue ser mais cruel, pois observam-se com frequência predadores a comer as suas presas ainda vivas.

 

A suposta crueldade deste costume aliada ao facto de se despender quase um ano de cuidados, pesa também contra a tradição pois acaba por ser mais comodo comprar a carne à medida que se necessita o que gradualmente empurra a tradição para a gaveta das memórias.

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