A Candeia.
Quando o prepotente Marão no final de cada dia, barrava arrogantemente a luz solar impedindo-a de chegar a Constantim ao mesmo tempo que empurrava o negro da noite na direção da aldeia, buscava-se ajuda na amiga das noites escuras. A candeia.
Imolava-se então a torcida, que se contorcia em espasmos desordenados sob as ondas de calor resultantes da lenta combustão do azeite e então, escassa como o dinheiro, pobre como a mão que a ateava e cansada como os braços que a seguravam, surgia a luz libertada pela chama que dançava constantemente na ponta da torcida, como que a tentar dar ânimo aos exaustos corpos que em seu redor executavam as últimas tarefas de um dia extenuante.
Figura 300 – A candeia tradicional.
A mesma luz que ouviu muitas confidências de jovens casais, que presenciou muitas discussões, que velou pelos que à lareira dormitavam subjugados pelo cansaço e que brilhava um pouco mais ao viver os momentos de alegria dos seus donos.
A mesma luz que escutou muitas conversas entre pais e filhos, que incentivou muitos momentos de conselhos, que animou muitos idosos após uma vida inteira de intensa labuta e que apoiou muitos casais no delinear de estratégias para o dia seguinte.
A mesma luz que comungou de muitas refeições em torno da lareira com as pessoas sentados nos baixos bancos de madeira com o prato no colo e que orou em conjunto quando a família junto à lareira contava o terço.
A mesma luz que se emocionava com a ternura do momento em que um filho deitava a cabeça no regaço de sua mãe e adormecia com os suaves afagos da mão rija e calejada pelas agruras da vida.
Enfim toda uma panóplia de momentos e situações que já se encontram tão extintas como os dinossauros, vividas durante séculos sob o olhar de um objeto também ele já extinto. A Candeia.
Descendente das lucernas, são concebidas em chapa de ferro e adaptadas para fazer face às necessidades de apoio e transporte. É composta por um reservatório para azeite ou óleo, uma base para apoio, um bico com ligação ao reservatório, uma alça de transporte manual, espelho refletor circular ou quadrangular e uma pega para suspensão.
O latoeiro unia as peças com soldadura a estanho utilizando um ferro de soldar aquecido nas brasas de um fole de ferreiro.
Um farrapo, normalmente em algodão, depois de enrolado originava a torcida, que introduzida no bico ficava mergulhada no reservatório, absorvendo o azeite por capilaridade.
Com a torcida empapada em azeite, ateava-se fogo originando uma chama mortiça mas constante que consumia o azeite com uma cadência bastante precisa.
Pelo fenómeno da capilaridade, o azeite continuava a subir em direção à chama, até não restar no reservatório nem uma “grocha” (gota), sendo pois imperioso o seu reabastecimento.
Sempre que mais luz fosse necessária, extraía-se um pouco mais de pavio e de imediato a chama aumentava a sua intensidade.
Com o tempo, a lata da candeia ficava enegrecida pela “ferruge” (deveria dizer-se fuligem) libertada tanto pela candeia como pela lareira, que nas paredes mais próximas da fogueira, chegava a atingir espessuras consideráveis.
Chamava-se lata à folha de ferro laminada. As candeias de efeito decorativo que hoje se comercializam, já são feitas de “folha-de-flandres”, chapa electroliticamente tratada.
O azeite já era utilizado na iluminação desde o século 12 a.C., concorrendo durante muitos séculos com as velas de sebo no interior das habitações. O facto de as velas serem um produto caro e menos durável levou as pessoas a optarem maioritariamente pelo azeite como combustível.
A evolução das técnicas de trabalhar o metal, originou diversas alterações na conceção das candeias, quer nas diferenças regionais, quer no tipo de necessidade, quer pelo recheio das carteiras que as solicitavam ou também pelo metal utilizado na sua construção.
Saíram das mãos dos latoeiros, candeias em lata de várias formas, em latão, cobre e estanho. As de latão, cobre ou estanho, conhecidos como candeeiros, (Figura 301), tinham normalmente dois, três ou quatro bicos, maior capacidade, ferramentas para utilização e esteticamente um aspeto agradável.
Figura 301 – O Candeeiro.
Os candeeiros além dos elementos essenciais, base, coluna, reservatório, bicos, tampa do reservatório e pega, equipava-se também com espelho refletor direccionável, atiçador, apagador, morrãozeiro e balde para resíduos, não sendo obviamente peças para todas as bolsas.
Além da aplicação nas habitações mais abastadas, eram muito utilizados nas vigílias fúnebres, quando os defuntos se velavam nas suas próprias casas. Pediam-se então emprestados para acompanhar os defuntos nos seus últimos momentos em sua casa.
Sempre que era necessário levar alguma luz para fora da habitação, a mesma lanterna que se utilizava com as velas, podia ser utilizada com candeias, que nestes casos não tinham haste.
Figura 302 – Lanterna e candeia de azeite para utilização conjunta.
Também aqui a falta de possibilidades levava ao improviso e para isso, bastava utilizar um recipiente usado, encher de azeite, utilizar um pedaço de cortiça com um pequeno furo no centro para segurar a torcida ou pavio.
A cortiça era muitas vezes revestida com uma película de alumínio, ou com uma chapa fina por cima para que a chama não queimasse a cortiça. Depois da torcida estar impregnada de azeite, o dispositivo podia ser utilizado como candeia.
O azeite foi durante séculos utilizado na iluminação o que incluía a iluminação pública e que perdurou até meados do século XX em muitas localidades.
Figura 303 – Candeia improvisada.
O seu acendimento e reabastecimento eram garantidos pelos acendedores de lampiões, que julgo que em Constantim nunca tiveram grande trabalho, pois não tenho conhecimento que na nossa aldeia tivesse existido iluminação pública a azeite exceto no cruzeiro.
Em palácios, casas senhoriais e casas de famílias abastadas existiam habitualmente lampiões de azeite que ajudava na iluminação das ruas.
Figura 304 – Dois exemplos de lampiões de azeite na via pública.
A candeia, concebida de materiais modestos, é no entanto testemunho incontestável do domínio do fogo pelo homem, de quem durante muitos séculos foi íntima e humilde companhia.
Embora durante séculos tenha vencido o peso das noites, desapareceu sem quase se dar por isso não resistindo à evolução dos tempos, mas consciente que à sua luz, nasceram muitas crianças, viveram-se muitas vidas e alimentaram-se muitos sonhos e paixões.
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